Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos

BRA-SIL-VA

 

 

No segundo turno da eleição de 2022, um pouquinho mais da metade dos eleitores do país pareceu adotar, sem qualquer ranço de preconceito, o sobrenome ou apelido "SILVA".

Seguindo o étimo latino, aquela avalanche de eleitores mais pareceu um belo BOSQUE, ou uma linda MATA, ou uma florida FLORESTA, ou uma SELVA vestida de verde:  a mãe dos "SILVA" do país inteiro. 

Somados, abraçados, irmanados, imanados (...), não tinha que ver, nas filas coloridas das seções eleitorais, o acabamento de fundo esverdeado de um quadro gigante que, alumiado por um raio solar, simboliza a nossa bandeira a tremular.

Um dia de festa com quatro anos de espera, em que toda a gente de uma numerosa família geoambientalista se diverte, se incomoda, se acomoda, se manifesta e - aqui, ali - também protesta:

"Parem de queimar nossas matas, nossas florestas!" - gritavam mais de um milhão de "SILVAs". 

Noutras seções igualmente lotadas, faziam a mesma denúncia levas e levas dos "ALVES": anagrama ao pé da letra, de mesma seiva, da mesma "SELVA" depredada, desprezada, desmatada...

"Parem de matar nossos indígenas!",  Gritos de guerra indignados de outras tantas famílias migradas, refugiadas, integradas, assocializadas...

Clamores por direitos humanos aos deuses da natureza, numa dança com esses deuses ombreadas. 

Festejos, petições ou protestos que faziam os seus "PEREIRA", os "OLIVEIRA", os "NARCISO", os "JACINTO", os "de LIMA", os FLORÊNCIO", os "FIGUEIREDO", os "NOGUEIRA"... 

Pareciam todos de uma mesma madeira, quando clamavam, ou pereciam ardendo na mesma fogueira.  Momento de choro e de chorume.

Mas os deuses enviavam suas "SIMONEs" para ouvir os seus clamores.  

E, para embalar ainda mais a esperança, a festa se encerra com a dança das "ROSAs", das "MARGARIDAs",  das "SUSANAs", das doces "MELISSAs" e das "SÍLVIAs" da Silva.

Qualquer um desses nomes flui da selva.  SILVA é a sua forma sincopada, manuscrita nos livros paroquiais desde tempos ancestrais (1612).

Foi nesse ano do Brasil colônia que um "da Silva" aqui chegou e fixou raízes.  Sobrenome herdado dos bosques do país colonizador. Contam-nos a nossa história os escritos portugueses, cheios de senões e de talvezes.

Era "Pedro da Silva" o seu nome completo.  Não um pedro pedreiro, tampouco um pedro primeiro, mas o Pedro da "Silva", semente do sobrenome de nossa gente.  Alfaiate.  Mão de obra importada.  Só os nativos não entendiam a necessidade dessa arte.  Trabalhava sentado, cortando tecidos que cosia com linha e à mão, com extremada precisão.  Só não sabia cortar lenha.  Como se fosse um "da Silva" moderno, podia até cortar pela metade o rincão que o acolheu: de um lado o Norte e o Nordeste; do outro, o Sul, Sudeste e Centro-Oeste.  Alinhavava-os depois, fio a fio, qual divinal desafio, remodelando-os, ora refazendo-os, ora remendando-os...

Um "Da Silva"  fazedor de casas...  Casas de botões - claro! - nas roupas que cosia para vestir o povo nos dias de festa dos santos dias. "Um dia, todos os dias serão santos" - prometia.

Se as selvas queimavam, na verdade o que queimavam era os "Silva", sobrenome da maioria nordestina, daqueles cujo prenome foi retirado das folhinhas do dia em que vieram à luz.  De resto, nada têm, a não ser um matulão pra sair como carga de caminhão para outra região.  Muitos ali nascidos, ainda crescem e morrem invisíveis.

Ih!... Tem cheiro de suor na festa!...  Cheiro de cinza de uma floresta que precisa ser replantada, recosturada.  Suor de negros transpirando cheirume de mata queimada.  Os primeiros cheiros dessa cor neutra vieram das SELVAS da África. Embarcavam em navios negreiros aportados em Cabo Verde ou no arquipélago da Madeira. Turistas acorrentados, aqui chegavam sem sobrenome e sem sonhos.  Quando registrados - somente possível já perto da abolição -, recebiam o sobrenome dos seus compradores, a maioria "SILVA" ou "da SILVA".  

Os mercadores de escravos, quase sempre, eram portugueses que buscavam aqui uma nova vida. A mesma nova vida que os SILVA, cabras da peste, nordestinos, iam aventurar lá no Sudeste.  Tais mercadores beneficiavam-se do anonimato quando usavam o sobrenome mais comum trazido do seu país de origem - SILVA - um apelido sobretudo selvagem.

Os SILVA, acorrentados ou os degredados, misturaram-se com os indígenas, os quilombolas, os pretos, os brancos, os pardos, os operários, os artistas, os alfaiates, os motoristas, os enfermeiros, os maqueiros, os pescadores, os estivadores, os camponeses, os camelôs, os muambeiros, porteiros, ajudantes de pedreiro, enfim: formam a heterogeneidade dos comuns caracterizada no artigo 3º da Constituição Federal.  São aqueles que vivem em comunhão:  os comunhistas (se me permitem o neologismo). 

Mudam de região em busca de alimento, emprego ou uma profissão ou, muitas vezes, uma ilusão.  Moradas singelas: quatro paredes de qualquer coisa, uma porta e uma janela. Florestas de zinco, portas sem chave e sem dobradiças, virando favelas sem frutos, sem favo, sem fava, sem hortaliças. 

Circunstancialmente distantes, Inventam canções com saudade do verde ou da seca de suas terras.  Saudade da fornalha. O braseiro brasileiro.

Relembram as meninas faceiras, faxineiras, lavadeiras, camponesas, cozinheiras, companheiras (...), que deixaram em suas cidades só pra depois se alimentar de saudade.

Pra voltar, precisam de dinheiro. Arranjam um pandeiro pra acompanhar o cordel. Não sabem ler nem tocar.  Não dá certo. Trocado minguado.  Aí, algum desinibido, vira artista de circo, nas feiras, nas praças, no meio da rua, nos becos apertados.

Aprumam-se de pé, igual aos artistas de circo do interior, : deslizando em corda bamba. 

Não querem aplausos. Querem mostrar o seu sofrer e a ânsia de sobreviver nas terras do salve-se quem puder.

E, certa vez, um desses "SILVA" assim o fez:

- andou solto na corda esticada (só Deus sabe quantas quedas levou!).  Insistiu.  Atravessou.  Terminou torneiro mecânico:  uma promoção pros que vêm lá do sertão doutra região.

- Doutra vez, virou sindicalista:  outra promoção pela facilidade de comunicação.  Valeu alguma prisão.

- Persistente, fez a corda mais longa:  terminou presidente. 

- Pediram bis.  Acertou, mas acabou preso.  Estava arrancando aplausos demais da multidão. 

- Cumpriu a pena e. uma vez livre, esticou a corda de novo. 

- Os SILVA todos de sua região o arrastam com essa corda paraense, em procissão: Brasileiros, artistas, arteiros e companheiros... 

- "...Na rua ou teatro é saltimbanco da cidade. / Seu desejo?  / Quer liberdade e Paz duradoura"      (Nilza Freire, Recanto das Letras:  última estrofe do texto T-739452).

Que assim seja!   

    

                                        (www.fernandoafreire.net)

 

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Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 05/11/2022
Alterado em 06/11/2022


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