Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos


UM CARNAVAL NO MOSTEIRO


         

Fred mora numa cidade portuária: Cabedelo.  Estuda na cidade vizinha, Neves, a vinte quilômetros de estrada poenta e esburacada, mas ainda lhe sobra tempo para levar uma vida de monge. Reza Primas, Vésperas e Noas, todos os dias, sob rígido horário canônico, com um grupo de estudantes que se iniciam na maioridade. Vida de renúncias, influenciada pelos amigos – Solemar, Genésio, Heleno – que esmiuçam os escritos de alguns ícones da literatura cristã do século XX: Tristão de Atayde, Léon Blois, Jacques Maritain, Guy de Larigaudie, Antoine de Saint-Exupéry...

Em “Terra dos Homens” (Exupéry) Fred, influenciado, vê-se igual ao garoto que se angustia e chora em silêncio, porque precisa fazer algo para desviar a humanidade da cegueira que o desenvolvimento tecnológico proporciona em arrancadas de foguete. Começa a década de sessenta. Prenúncio de mudanças no mundo, como se se profetizasse o fim de toda uma estrutura fixa e de relações estáveis.

Quer-se um pregador, um missionário, um coadjutor de Deus entre os homens – cada vez mais necessitados de atitudes em favor do próprio homem.  Urge a solidariedade entre todos os povos.  Urge desguiá-los da frieza e do esmagamento da máquina que - de aparência bela, ágil e útil -  traz invisível, em sua engrenagem, um germe destruidor dos desígnios do Criador.  Sente-se chamado por Deus.  Mesmo alertado pelo pároco “Monsieur curé”, de que são íngremes os caminhos de um missionário - que exige sacrifícios, doação e importantes renúncias, Fred decide ingressar no seminário. Até já se imagina um monge beneditino.  O alerta do “Monsieur curé” anima-o mais ainda para o enorme desafio.


Tambores começam a anunciar a chegada do Carnaval. Fred jamais perdera essa festa em Cabedelo.  Quando rapazola, saía nos desorganizados  blocos de sujos (pela manhã), desfilava na organizada escola de samba de Zedoidinho (à tarde)  e  pulava, sem canseira, no clube fechado da cidade (à noite).  Ainda guarda em sua mala de plástico, envelhecida pelo desuso, confetes, serpentinas e lança-perfumes sobrados do Carnaval passado.

Agora, vai doar tudo.  Será seu primeiro gesto de renúncia como missionário noviço.  Reunirá forças para fugir de todas as tentações.  Largar tudo, assim de uma vez, já é um explicável sacrifício.  Doravante, só escutará de longe os saxofones, banjos e bandolins que lhe passavam energia na grande festa da orgia.  Topa o desafio. Como cristão, desguiar-se-á, por amor a uma causa, dessa festa de pagãos.  


Aí, como se guiados por um anjo, Solemar e Genésio lhe trazem um convite para retiro, durante o Carnaval, no cenóbio de São Bento, Olinda (PE),  a  duas  horas  de  viagem  dali.  O “Monsieur curé” consegue a permissão.  Conviver um pouco com os monges beneditinos será primordial para quem se encaminha para o sacerdócio.  Sentirá de perto toda uma vida de obediência, de renúncia efetiva, de pobreza voluntária e de entrega, corpo e alma, a uma divindade. 

Classifica os beneditinos como homens que Deus escolheu para o Seu serviço.  Aceita o convite e, porque já é sexta-feira e até já conseguira uma dadivosa carona, corre para desocupar a sua mala de plástico - marrom borrado de marrom - arruma dentro dela a pouca roupa que tem, fecha-a com dificuldade.  Beija a mãe, atônita, e segue os passos rápidos dos amigos.


Viagem tranquila. Sabor de quem vai pro Céu.  Agradece a carona com um convincente “Deus lhe pague” e adentra no mosteiro junto com os dois companheiros de retiro.  Parecem desabituados noviços entre monges de roupas iguais.  A roupa que os faz.  Tirante os trajes, logo se descobrem solidários na fé.  Rezam, juntos, Primas, Vésperas e Noas, dessa vez acompanhando a suavidade do canto gregoriano.  Sensação de paraíso.  Comensais nas refeições frugais.  Fartura de vegetais colhidos nas hortas do quintal. 

Do alto daquela clausura, nem sinal de Carnaval.  Às vezes, madrugada a dentro, o silêncio é rompido pelos sons refletidos dos clubes fechados da redondeza.


O dia seguinte começa com um estágio de leituras na biblioteca.  Fred aproveita para investigar, nos livros de história, a origem do Carnaval, seu antigo hobby.  Analisa os detalhes dessa festa de pagãos.
 

Para os cristãos medievais, significava o período de quarenta dias de festas profanas que se iniciava na Epifania – quando da celebração do Dia dos Reis – e se estendia até a Quarta-Feira de Cinzas, início dos jejuns da Quaresma.  Sente-se, já, um estudioso do tema que mais o ensurdecia nessa época. 

Descobre que os festejos carnavalescos foram trazidos de Portugal.  Tinham o nome de “entrudos”.  Consistia em se jogar farinha misturada com tinta, graxas ou água nos foliões (era sua brincadeira predileta nas manhãs de Carnaval).  Havia exageros.  As autoridades policiais começaram a intervir.  Os carnavalescos, então, procuraram se organizar e substituíram o malcheiroso mela-mela pelo talco, lança-perfume, confete e serpentina.  Muito vistos nos blocos de rua (que na sua cidade desfilavam à tarde) e nos salões dos clubes fechados (à noite).  

Vê que o termo “Carnaval” vem do latim medieval como “carnem levare” ou “carnelevarium” – atos de oposição ao espírito e exposição da carne, alívio da matéria, liberalidade.  


Malgrado o propósito de tudo investigar, Fred não consegue descobrir a verdadeira origem do Carnaval.  Alguns estudiosos apontam as festas “saturnale” que a Roma dos Césares realizava em honra ao deus Saturno, divindade mitológica da agricultura, da força e da justiça.  Festas regadas a excessos de vinho e orgia.  E a mitologia distinguia Baco como o rei do vinho.  Daí, a expressão “bacanal”, tida como a orgia decorrente da embriaguês pelo vinho. 

Há quem admita que o Carnaval teve raízes na Grécia: celebrações comemorativas da colheita da uva.   Ali também se fabricava o vinho e as orgias se repetiam.  Daí as duas hipóteses quanto à origem do termo “Carnaval”.  A única diferença, na verdade, é que o deus romano do vinho se chama Baco, enquanto na Grécia se chama Dionísio.


E o Rei Momo, a quem o prefeito entrega as chaves da cidade no início do Carnaval ?!...  - Fred se questiona.

A versão mais aceita a respeito do Rei Momo é que se trata de uma entidade de origem grega, porém cultivada em Roma. Prova de que, nos bacanais, Roma e Grécia sempre foram iguais.

No caso, César escolhia o mais bonito dos seus soldados, coroava-o e, na “Saturnale”,  lhe entregava a chave do reino para um governo de quatro dias. Provocava-se um intenso relaxamento moral nesse período. Desregrada gana por comida e muito vinho. Final de festa: Rei Momo era sacrificado no altar de Saturno. 

Fred quer submeter-se a uma mortificação, pelas tantas vezes que fez parte dessa festa  sem  conhecer  a  sua   origem, os pingos de sua história.  As mulheres e as canções bonitas é que ainda garantem a eterna magia dessa festa, em que se sobressaem a irreverência, a luxúria e a libertinagem. 


Profere, no final, um breve relato acerca do assunto pesquisado. Os amigos vibram com a mudança comportamental do irmão relator, evidenciada na seguinte expressão:

Aos convites pro Carnaval, doravante direi NÃO.  Da forma como as máquinas constroem e, ao mesmo tempo,  trazem o germe da destruição, o Carnaval traz alegria, mas se fantasia com as cores da prostituição”.

Os amigos acreditam na firmeza das palavras de Fred, e saem a rezar com ele e por ele.  Rezas cantadas em procissão.  Assim, contritos, visitam todos os recantos do mosteiro.  Nos longos intervalos, estudam e ouvem música sacra, participam da missa com os monges, ouvem histórias bonitas por eles contadas, vividas ou repassadas. 

Tudo parece uma escalada para o Céu quando, terça-feira à tarde, acaba o recolhimento.  Os três hóspedes, ou quase noviços, sob um suave repique de sinos, deixam o mosteiro exatamente às quinze horas, cheios de graça, bênçãos e murmúrios de saudade. 

Malas nas mãos de sorridentes caras de anjo.  A pé, quase sem se falarem, como soe acontecer nos corredores do mosteiro, ainda escutam os sinos tocarem baixinho.  Dirigem-se ao ponto de ônibus mais próximo.
O embarque de volta, em ônibus, está previsto para as dezesseis horas.

      
Ainda descem a Ladeira do Mosteiro quando, a pedido de Fred, resolvem esperar para ver passar o “Bloco da Pitombeira”, que também desce a ladeira.    A ainda pequena multidão se comprime na rua estreita, cantando: “...se a turma não saísse, não havia Carnaval.../// ...morar lá no morro, eu também quero, eu também quero, eu também...”.   Convite irresistível ao mais puro dos monges, que, aliás, já moram no morro!    Bela orquestra em tom e ritmo contagiantes.  Trajando shorts singelos, meninas atraentes mexem com graça seus corpos quase desnudos...  Fred vê – ou acha que vê – sua Maritza entre elas.  

Dançara com Maritza por vários domingos, quando de sua passagem pela escola de marinha, um ano antes,  lá em Recife,  cidade vizinha.  Os próprios aprendizes organizavam e animavam a festa. 

Está certo de que é ela, sim. Sente-se perto da sua Maritza, aquela a quem deixou sem dizer um “até breve!”...   

Esquece tudo o que aprendera no mosteiro.  Esquece as  rezas  e  os  cantos  gregorianos. O suave repicar dos sinos da capela são logo abafados pelos surdos e pelo vibrar dos bordões dos taróis que marcam o compasso da afinada orquestra.    Reconhece os requebros da namoradinha de pernas torneadas.  Precisa explicar a ela porque renunciara ao mar e abraçara o sacerdócio. 

Que sacerdócio?...

        
Cai no passo, para espanto de Solemar e Genésio, que a tudo assistem recostados à parede de um casarão antigo.  Mistura-se à turba de foliões. 

Uma das meninas, precisamente a mais parecida com Maritza, apossa-se da velha mala de plástico de Fred, com o intuito, talvez, de forçá-lo a permanecer na festa.  Ele, sabendo da fragilidade da mala, que já tinha o fecho-éclair quebrado, tenta segurá-la.  Como não consegue, grita:


- Maritza, eu quero a mala, me deixe a mala !

- Ela se diverte com a submissão de Fred à sua vontade.  Parece, mesmo, tratar-se da legítima Maritza, pois sua atitude era de uma criatura com ânsia de vingar-se daquele que um dia a desqualificara, deixando-a “a ver navios”...

Ardilosamente,  ela atira a mala para os outros foliões, que a passam, em sopapos, de mão em mão.  Como era de se esperar, o fecho-èclair arrebenta de vez, a mala se abre e as surradas roupas do Fred vão sendo arrastadas e pisoteadas pela multidão.


O bloco passa. Fred consegue recuperar seus trapos, mas, na contagem, sente falta de uma meia.  Aí, ainda cheio de saudade, grita bem alto, para o mundo ouvir:

- Maritza, a meia ! ! !...               
        
O ônibus encosta na calçada da mercearia da esquina, lá onde a ladeira termina.  Os três amigos saem correndo para alcançá-lo.  Entram, ocupam seus lugares e permanecem calados.   

Fred sente, de coração, que aqueles dez minutos de êxtase valeram por todos os seus outros carnavais.  Pena que seu primeiro amor, e algo mais de valor, tenham sido arrebatados ladeira abaixo.  Só no meio da viagem é que percebe ter sido mais que avaliado pelos dois amigos, companheiros de retiro, que tanto acreditaram nas suas intenções missionárias. 

Intenção que também rolou com a outra meia na descida da ladeira.                               

                                                                                                  

Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 02/03/2011
Alterado em 24/02/2017


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