Fernando A Freire

Amar a dois sobre todas as coisas

Textos


      A MURIÇOCA E O VIOLINO
 
< Uma homenagem a Monteiro Lobato, no seu dia, e ao Dia Nacional do Livro Infantil >
 

Sarah completa seis anos de idade e ganha um violino de verdade.  O outro era de brinquedo.
Presente dos avós maternos.

A mamãe logo contratou um jovem violinista para o aprendizado das primeiras notas: DÓ - RÉ - MI - FÁ - SOL - LÁ - SI.  E ele foi mais adiante, ensinando à pequena Sarah gostosas canções infantis, na clave de SOL e na clave de .

Pose elegante, ela toca, a todo instante, ora as notas graves, ora as mais agudas.   E não para quando aprende o trivial:

"Atirei o pau no ga-to-to..." ou
"O cravo brigou com a rosa..." ou
"Gato de botas" ou "Papai Noel" ou...


O dia todo a tocar, para a mamãe, na cozinha, e para o papai, no sofá.  Ambos a reger, sem saber, e a incentivar.


Última semana das férias escolares.  A tia Raïssa - tia Rá - a convida para aproveitar esses dias na zona rural, no pequeno sítio onde mora, a poucos quilômetros da cidade.

- Vai ser bom - disse a tia Ra - v
er o Sol, de manhãzinha, subindo as montanhas para espalhar pelo mundo sua claridade tamanha!  De lá se vê melhor esse brilhante clarão
– claro! –
porque nas cidades gigantes predomina a poluição.


Sarinha prepara sua mochila e põe o violino na maleta apropriada.
Toda arrumada, beija a mãe com carinho e segue com a tia Raïssa.
Pés firmes na estrada!


no campo, à tardinha, ela encontra afinadíssimas andorinhas que, sem violino, entoam hinos com belos trinos.
Cumprimentam assim a visitante e depois esvoaçam para algum lugar distante.
Ela, comovida, lembrará dessa homenagem por toda a sua vida.
Ainda agradecida, tira, todas as tardes, debaixo das árvores, sons harmoniosos do seu violino, para embalar os filhotes inocentes, que as mães, displicentes, deixaram sozinhos em seus ninhos.


Minúscula, só às noites uma muriçoca, desentoada, vem cantar, travestida de recepcionista, uma canção, irritante e persistente, ao ouvido da violinista.

Tenha dó!   Você só faz LÁ sustenido!  Por favor, vá voar e aprenda os sons do vento ou das andorinhas,  se é que pretende ser artista”– Fala, aborrecida, para a muriçoca, movendo o arco, com rapidez, de encontro ao próprio ouvido,
para afastá-la de uma vez.

Mas o inseto, ousado e abusado, logo volta a cantar, no mesmo palco de antes, um parecido cântico sacro – até mais interessante – trazendo, como acompanhantes, num coral improvisado, mais outras três estreantes concertistas, que também desejam ser artistas.

Sola, a muriçoca, como sempre em LÁ sustenido, um insosso ruído, com o fundo musical do seu coral, em uníssono, mas, desta vez, sua canção reclama de uma estupidez:
É que o vento só canta em soprano, e não tem DÓ de ninguém quando solta a sua voz.
Ou melhor: "quando sopra contra nós".
Arrasta as pobres muriçocas, pequeninas, lá pros redemoinhos das colinas.
Os magrelos insetos se escondem, de baixo das camas ou dos guarda-roupas, fugindo do vento ou das andorinhas – que quando famintas também não lhes poupam.
Só acham bom esse esconderijo, porque, ali, namoram e se reproduzem, amparados do vento, embora sujeitos a mais algum tormento.


Sim, dona muriçoca, eu lamento o ocorrido, mas diga às suas amigas que poupem o meu ouvido!  Quanto à proteção reclamada, na verdade, por que não se protege nas águas paradas? Não é lá sua maternidade?  – Pede Sarinha com evidente ingenuidade.

Veja só, como você é desumana!... Primeiro, quis me matar com o arco do violino.  Depois me recomenda procurar o vento assassino.  Inda me expõe às andorinhas famintas.  Agora, me sugere o suicídio por afogamento...
Você sempre me pede um sacrifício, como  se  eu  pertencesse à odiosa família dos  “Aedes Aegypti”, aqueles que transmitem a dengue poluindo o seu sangue.
Saiba que  a  minha  família  é composta de humildes mosquitinhos
(muriçocas e quietos pernilongos, coitadinhos!),
e nossas picadas não passam de lambidas inofensivas.
Apenas nós, fêmeas, precisamos de um pouco do sangue humano ou de animais mais novos, para  a  maturação dos nossos ovos.
Precisamos do seu sangue, sim, para salvar nossos filhotes, para exercer o nosso sagrado direito de “mães” e de “cidadãs”.
Os nossos irmãos ou namorados, os pernilongos, são jovens puramente vegetarianos.
Nunca foram sanguinários...
Por favor, não nos confunda com alguns insetos tiranos e ordinários!...            


Ah, minha amiga muriçoca!   Eu tenho  pensado errado com relação a isso:  não é que ainda acredito que vocês, insetos voadores, são todos iguais, todos provocadores do mesmo perigo!...
Tá bem!  Tá bem!
Matar, nunca mais!  Vamos conviver em paz!
Você escuta a minha música, agora, e eu vou escutar a sua logo mais, quando for dormir.
Por enquanto, você só vai me ouvir.
E tem mais: você só pode me picar quando eu estiver a ressonar.
Fique tranquila, porque, desta vez, por amor a vocês, eu vou doar meu sangue pra salvar sua família
. – Garante Sarinha, solidária com sua amiga sanguinária.


Tudo combinado.

Sarinha tocou seu violino até quase dez horas da noite. Última noite no sítio.
A amiga muriçoca e o seu coro de três vozes, ficaram por ali, em sobrevoo, ora pousando no ouvido da violinista, ora na carcaça ou no arco do violino, deleitando-se com os sons dos belos hinos.
Tentam fazer o fundo musical, com o seu coral sempre em LÁ sustenido, mesmo desafinado, temendo, ou não, novo arremesso do arco em sua direção.


Até que enfim, Sarinha prepara-se para  dormir.
A tia Raïssa traz cobertores e coloca um mosquiteiro em torno da cama, a fim de protegê-la do ataque de insetos voadores.

Sarinha deita a cabeça no travesseiro, pensando no trato feito com a amiga muriçoca, enquanto a tia,  cuidadosa, fecha todas as passagens possíveis de insetos através do mosquiteiro cor de rosa. 

Enfadada, a “tratante” violinista dorme.
Dorme com os anjos.
E sonha...
Sonha exatamente com a amiga muriçoca, que assumira o compromisso de ter muitos filhos e, por isso, marcara casamento com um elegante pernilongo, de prestígio, lá do seu mesmo esconderijo.
Convidada para esse casamento grã-fino, Sarinha se vê, em sonho, lá na porta da igreja, fazendo acordes no seu violino:
"Bendito e louvado seja"...
Vê as testemunhas, as mesmas três muriçocas do coral, ajudando a carregar o enorme véu cor de rosa da noiva muriçoca.
Véu de tamanho anormal, que
- ora veja! -
cobre todos os bancos da igreja...
Em torno desse belo  manto, todos os insetos convidados, também elegantemente trajados, rumorejam, em uníssono, uma canção distante do seu ouvido, pra variar, em

LÁ (sustenido).


Aí!...

Sarinha desperta do sonho.
Cansada, adormecera de forma inesperada.
Fica indignada por não haver cumprido a palavra empenhada.
Desespera-se...
Mas, fazer o quê?   Mais nada!
Dorme, novamente com os anjos, até o amanhecer.


Amanheceu.

Dia já bem claro, ela começa a recordar o sonho.
Lembra que o véu do seu mosquiteiro é o mesmo véu cor de rosa que a noiva muriçoca arrastava em direção ao altar...
E, nesse momento, vislumbra uma muriçoca, próxima ao teto, o tempo inteiro tentando puxar ou penetrar no seu mosquiteiro.
Sente-se mal com o seu sonho se tornando real.
Estão ali os elementos principais do seu sonhar:
o violino sobre a cadeira, a muriçoca e o mosquiteiro.
Levanta-se, pela primeira vez mal humorada e, para tudo olvidar, inicia os preparativos para a viagem de volta ao seu antigo lar.      


Tia Raïssa, como sempre cuidadosa, confere todas as coisas, enquanto a sobrinha violinista, pra se despedir, dá uma espiada nos ninhos – agora vazios – das andorinhas.
Torce para que esse “vazio”, esse “nada”, signifique que os filhotes em pouco tempo tenham aprendido a voar e, mesmo pequeninos, estejam por aí, esvoaçando e já entoando os mais belos trinos...


Está pronta, Sarinha?  – checa a tia Raïssa – Não falta mais nada?  Então...
Pés firmes na estrada!


No caminho, Sarinha chora, copiosamente.
Tia Raïssa nada diz, porque, no íntimo, sabe que aquele choro é de saudade do sítio.
Região campestre onde ela, embora sozinha, se sentiu, na verdade, muito feliz...

Mas não é!...   


Perguntada pela tia
(porque esse choro já a intriga),
Sarinha confessa:


Estou com saudade das minhas amigas”.

– Amigas? Que amigas?!...” – Estranha tia Raïssa!..

*****

Chegando em casa, a mãe, morta de saudade, dá uma ligeira arrumada no cabelo e na roupa da filha, tão ansiosamente aguardada:


Ai meu Deus, quatro picadas de inseto, todas juntas, aqui no seu pescoço!
São recentes! 
Ainda há sangue!  Ainda estão avermelhadas!
...  – 
Constatou dona Vera, já querendo levar a filha ao hospital a fim de se averiguar, em tempo, depois de minucioso exame de sangue, se se trata, ou não, de picadas do mosquito da dengue.


Não precisa, mamãe!

Foram minhas amigas...

Elas, desde cedinho, esperavam pra me beijar e resolveram me acompanhar.
Queriam saber até onde a tia Raïssa iria me levar.
Acho que, cansadas da viagem, ficaram pelo caminho...
e os ventos as carregaram
!...


- Os ventos!!!...

Lembra da fúria dos ventos veementes, que as muriçocas chamam de ventos assassinos, e volta a chorar, desta vez, abundantemente:

-
Foram-se minhas amigas!...

Que amigas, Sarinha? Por favor, que amigas?  Não vi qualquer amiga sua, nesses dias, lá no nosso sítio!...
Por acaso, você fez amizade com a solidão?!... Que amigas, então?...
  – Pergunta a tia Raïssa, mais uma vez, visivelmente assustada.

-  E o que é solidão, tia Raïssa?...
Acho que nenhuma criança sabe o que é solidão!... 

 
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 18/04/2011
Alterado em 29/04/2018


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